17 julho, 2013

Rua da Imaginação

   Sou morador único daquela casinha verde, na rua da imaginação. Ora chamo alguém para uma visita, ora fico sozinho, desfrutando das razões que me levaram a escolher aqui, o meu cantinho. Quero trocar o piso. Porcelanato, talvez, dura mais. Besteira minha! Em minha casinha, as coisas duram o tempo que eu quero, então, vinílico! Definitivamente, não. Provisoriamente. Amanhã trocarei tudo novamente, em um piscar de olhos.
   Dia ou noite? Ora noite, ora dia, ora noite, ora dia. Ontem fiz anoitecer - mudei o grande relógio da cozinha para às nove da noite - enquanto bebia meu chá e lia um jornal
 A notícia era triste. De repente, larguei o chá pela metade, decidi olhar a rua pela janela e vi um garotinho maltrapilho e de olhar abismal sentado na esquina, como sempre, triste por ser invisível.
   Não para mim.
   O fiz ser um garoto de esperança, então logo avancei o ponteiro do grande relógio para às nove da manhã e o sol raiou - em menos de um segundo - e com ele, o clareou-se sorriso e o mundo daquele pobre garoto, que já não era mais pobre, pois começara em seu primeiro emprego em uma revistaria. Era a cara dele, sentia isso!
   Oh! Esqueci meu chá lá em ontem à noite, ele já deve estar tão gelado quanto o olhar do garoto que ontem, era pobre, e hoje, é rico de esperança. Acho que o chá nem deve mais estar lá. Alguém deve ter bebido... Não tem problema! Preciso aproveitar este dia claro para brincar um pouco de ser normal. 
     Ser normal para mim, é voltar a ter dezessete anos, morar em um barraquinho na Zona Sul, com menos de um prato de comida ao dia e pais separados, sendo minha mãe uma diarista muito batalhadora e meu pai um bêbado que sempre nos visitava vestindo roupas sujas, falando enrolado e com as mãos fechadas, em nossa direção. Não gostava das visitas dele. sempre me fazia chorar - e nunca foi de felicidade.
   Ser normal, para mim, é lembrar-me, também, que minha mãe - e minha única fortaleza - tinha quebrado a coluna e ficara inválida; e que eu teria de ficar na rua para conseguir algo para comermos, pois não podíamos recorrer a ninguém. Ainda bem que eu tinha acabado de terminar o ensino médio. Fui uma raridade na comunidade. Ser normal, para mim, é lembrar-me que, um mês depois de minha mãe quebrar a coluna, perdemos nosso barraco - e tudo mais - num deslizamento de terra enquanto eu estava roubando frutas da feira para alimentar esta família de duas pessoas. O pior é que minha pobre mãe estava em seu quarto, dormindo para nunca mais acordar.
   Após recapitular os últimos acontecimentos, tinha me arrependido de ter saído de minha casinha verde onde tudo acontecia, na hora que eu queria, na rua da imaginação. Estava aos prantos, sem ter para onde ir. Já se fazia uma semana desde que perdi meu lar - e minha mãe - e o jeito foi dormir na calçada. Tenho meu cantinho fixo, uma esquina bem agradável na primavera onde há uma praça bastante arborizada ao lado e uma bonita casinha verde, parecida com a que eu tinha antes de brincar de ser normal, e na janela dela, um rapaz que sempre me observava de frente à esquina onde passei a "morar".
     Ontem foi um dia que ficou em minha memória pois, não conseguia afastar certas imagens de minha vida da cabeça: os socos do meu pai, as humilhações pelas quais passei na escola e a que mais pesava junto às minhas lágrimas: a imagem de meu barraco totalmente destruído e eu sabendo que minha mãe, tão batalhadora e que lutou para colocar o pouco de comida em nossa mesa e que tantas vezes já apanhou de meu pai comigo, estava lá no meio. Mas, não foi isso que fez com que ontem ficasse em minha memória, afinal, essas lembranças sempre vinham à minha mente, mas sim, algo que eu jamais esperava em toda minha vida: o rapaz da casa verde, que me observava tanto, decidiu ir falar comigo. Era noite, aproximadamente às nove. Ele atravessou a rua com um jornal na mão e perguntou-me:
     - Por que choras tanto, garoto? Onde estão seus pais?
   Então respondi:
     - Não tenho pai e perdi minha mãe e minha casa há pouco tempo. Não tenho para onde ir, não tenho o que comer, muito menos ideia do que terei de fazer para sair das ruas. Peço ajuda, mas fingem não me enxergar. Pensei até em entrar para o crime, assim como fizeram quase todos os meus antigos colegas de classe, mas não quero isso para mim. Pelo menos não por enquanto. Se eu continuar sem existir para o mundo, é isso que farei: me tornar um assaltante, assim, terei o que comer e as pessoas me enxergarão.
     Então o misterioso rapaz surpreendeu-me com uma proposta:
     - Então você é um dos que ficaram desabrigados com o deslizamento de terra na Zona Sul? Acabei de ler neste jornal, que por sinal já tem alguns dias. Sempre te vejo aí, triste, dormindo na calçada, pedindo esmola às pessoas que fingem estar apressadas para não lhe dar atenção. Já vi até quem tenha lhe jogado papeizinhos de bala, lhe confundindo com um cesto de lixo. Aliás, se você fosse um cesto de lixo, jamais jogariam papeizinhos de bala em você... Quero lhe propor algo, quero lhe ajudar. Quando criança, tive uma história parecida com a sua, quando jovem, perdi minha mãe, meu pai era um torpe, nasci e cresci na favela e hoje estou aqui, bem resolvido, ou pelo menos trabalhando no que gosto. Sou formado em Jornalismo e dono daquela revistaria da praça, e preciso de alguém para me ajudar a organizar as revistas em suas devidas seções, já que fico pouco lá porque também trabalho em uma empresa de comunicação. O que acha de dormir em uma cama novinha? A ideia parece ótima, não? Pois bem, venha. Se afaste destes pensamentos ruins. Se quiser mesmo trabalhar para mim, começará amanhã mesmo! Pode ficar em minha edícula por enquanto. Só não se importe com o piso, pois troquei recentemente por piso vinílico, tanto da casa principal quanto da edícula. Você pode estranhar, mas é de um ótimo gosto.
     Muito emocionado, respondi ao rapaz:
     - Muito obrigado por mudar minha vida! Muito obrigado por me mostrar que não sou invisível e não sou ou fui o único sofredor deste mundo. Eu vou aceitar sua proposta e estou muito feliz!
     - Então, vamos atravessar a rua. Já são nove da noite e quero que comece já amanhã. Como a revistaria é logo ali, se sair às nove da manhã, você não se atrasará. Bem vindo ao futuro, jovem rapaz. Qual o seu nome?
     - Pedro! Meu nome é Pedro. - respondi ao rapaz.
     - Entendi! Muito prazer em conhecê-lo!
   Ao entrar em sua casa, o rapaz que não me falou seu nome me ofereceu um copo de chá, que por sinal estava morno e pela metade. Bebi tudo rapidamente e deixei derramar algumas gotas em minha roupa velha. Ele me preparou um sanduíche que eu nunca imaginaria comer em toda a minha vida, e após comer ele me mostrou a edícula, me separou algumas roupas, mostrou-me o banheiro para que eu tomasse um banho e foi à cozinha escrever não sei o quê.
     - Irei dormir, já está ficando tarde. Sua casa será esta, provisoriamente. Espero que goste do trabalho. Até mais e boa noite!
   Não consegui responder de tão emocionado que eu estava. Tomei meu banho e dormi como nunca havia dormido em minha vida. Eu sentia esperança, eu me sentia bem.
   Hoje, acordei às oito da manhã e logo tomei um banho quentinho. Uma delicia! Fechei a porta da edícula e fui até a cozinha do Daniel tomar café da manhã. Prestei bastante atenção em sua sala, lotada de jornais, revistas, papéis e canetas para todos os lados, além do copo vazio de chá. Me interessei muito por aquilo. Me empolguei tanto com toda aquela bagunça que pensei: "quero ser como ele!".
   Vesti minhas roupas novas e saí para ir trabalhar. Eram exatamente nove horas da manhã e eu havia saído primeiro que ele para abrir a revistaria. Ele me dissera durante o café que, em breve, a venderia para dedicar-se totalmente ao jornalismo, o que ele dizia, com muita ênfase, ser sua paixão. Então, ao passar por aquela esquina, parecia que eu ainda me via ali ou via outra pessoa chorando sentado enquanto pessoas passavam por ali, sem que percebessem que ele existia. Ergui a cabeça, olhei para os céus e vi a imagem de minha mãe. Ela deveria estar orgulhosa de mim.
   Minha vida mudou graças a um ser humano que me provou que a sociedade ainda não está perdida, que ainda existe gente boa neste mundo. O mais impressionante de tudo é que eu tive a impressão de que já havia passado por tudo aquilo alguma vez. Aquela casa verde, aquele piso vinilício, o chá, o jornal...
   Um Déjà-vu? Não sei. A única coisa que sei é que, agora, quero ser jornalista!

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